segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A crise internacional como oportunidade.

Abaixo, minha coluna da AE-News da Broacast da quarta-feira, dia 31/08. Bem, foi escrita antes da surpreendente decisão do Banco Central de baixar em 0,5 ponto porcentual a Selic, para 12%. No post, trato justamente da questão do espaço aberto pelo agravamento da situação internacional para o relaxamento da política monetária. O que nós aprenderemos nos próximos meses e anos é se o Banco Central, desta vez, foi ou não com muita sede ao pote. 

Dizem que os bons goleiros são os que, além das qualidades técnicas, têm sorte. A fórmula, aliás, pode ser aplicada a quase qualquer profissão. No caso da gestão econômica do PT, desde que Lula chegou ao poder, em 2003, é possível defender a ideia de que, como no caso dos bons goleiros, a sorte não faltou. Essa é uma tese complicada, na verdade, porque é muito difícil sustentá-la sem passar a impressão de desmerecimento em relação aos sucessos obtidos pelos governos de Lula e, agora, de Dilma Rousseff. Mas, para continuar com as comparações futebolísticas, tão ao gosto do ex-presidente, os grandes goleiros não são menos considerados por serem sortudos – muito pelo contrário. Não há necessariamente nenhuma ligação entre constatar que houve sorte e não reconhecer méritos.

Assim, a grande sorte inicial da gestão petista da economia foi, como é bem sabido, o boom do preço das commodities a partir dos primeiros anos da década passada, que liquidou de vez a fase de grande vulnerabilidade externa da economia brasileira. Os defensores mais ardorosos do governo Lula alegam que, se de fato a alta das matérias-primas foi um presente do acaso ao ex-presidente houve também rasteiras do destino, como a grande crise global de 2008 e 2009. Na mesma toada, é comum se comparar os efeitos desastrosos na economia brasileira das crises internacionais da década de 90 com a forma brilhante como o País superou o grande colapso na esteira da quebra do Lehman Brothers.

A reação em 2009

Na verdade, porém, não é difícil defender a ideia de que a crise de 2008 e 2009, e a ameaça de recaída agora em 2011 foram, paradoxalmente, momentos de sorte para os governos de, respectivamente, Lula e Dilma. Tanto numa situação quanto na outra, a crise pegou a economia brasileira em processo de superaquecimento, em ciclos de alta de juros pelo Banco Central.

Hipóteses contrafactuais são sempre perigosas, mas, na ausência da crise global em 2009, é provável que os juros tivessem de subir ainda mais, o que poderia exacerbar as tensões políticas que sempre cercam o funcionamento do Banco Central – ainda mais num governo de esquerda, cujo principal partido de apoio nutre uma histórica desconfiança em relação à autoridade monetária.

A história da reação da política econômica brasileira à crise de 2008 e 2009 é bem conhecida. Um conjunto muito amplo de instrumentos de estímulo foi ativado, incluindo política monetária (após alguma hesitação inicial), compulsórios, outras medidas de provisão de liquidez, agigantamento e ativismo do BNDES e o impulso fiscal propriamente dito, com aumento de gastos e isenções tributárias. Neste último caso, críticos do governo observaram na ocasião, com razão, que parte da ampliação da despesa, como os aumentos salariais do funcionalismo público, foi contratada antes da crise e com caráter permanente – contrariando, portanto, os princípios de uma política contracíclica propriamente dita.

De qualquer forma, a resposta à crise foi bem-sucedida, dando razão ao presidente Lula, que dissera que o tsunami não passava, do ponto de vista do Brasil, de uma marolinha. O PIB teve um crescimento ligeiramente negativo em 2009, mas muito em função do mergulho dos investimentos e da indústria. Por outro lado, consumo das famílias e serviços foram bem mais preservados, de forma que o mau indicador das contas nacionais não se refletiu em desgaste político.

Também está bem estabelecida a visão de que o governo exagerou ao prolongar os impulsos fiscais e a política de expansão de crédito dos bancos públicos, o que provavelmente teve algo de cálculo eleitoral para o ano de 2010. A economia cresceu 7,5% no ano passado, e os sinais de sobreaquecimento, tanto na inflação quanto na sobrevalorização cambial, ficaram evidentes já em meados de 2009.

Correção de excessos

A alta das commodities internacionais e a grande liquidez internacional derivada da política monetária ultrafrouxa dos países ricos ajudam a explicar, respectivamente, as pressões inflacionárias e a apreciação do real. Mas poucos analistas contestam que parte expressiva de ambos os problemas deve ser debitada ao crescimento acima do potencial.

O governo Dilma iniciou-se, portanto, sob o signo da correção dos excessos pós-crise global. A presidente parece não ter comprado a ideia de uma freada mais brusca em 2011, que permitisse uma nova aceleração em sincronia com o ciclo eleitoral. Assim, dentro de um figurino que também veste bem o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, a opção foi a de um resfriamento cauteloso, com alongamento do horizonte de volta da inflação ao centro da meta. A ideia é a de evitar que o crescimento caia muito abaixo do nível de 4% a 4,5%, que parece ter sido estabelecido como uma espécie de piso de ambição do discurso oficial.

Essa estratégia, porém, acumulou evidentes problemas. Na verdade, as projeções de crescimento já caíram abaixo de 4% para este e o próximo ano, sem que a inflação corrente cedesse significativamente e com os indicadores de consumo, emprego, renda e crédito ainda em níveis relativamente fortes. É verdade, por outro lado, que vai se ingressar em breve numa fase de provável recuo da inflação acumulada em 12 meses. Além disso, um ajuste mais suave dos indicadores econômicos que afetam diretamente as famílias não deixa de ser positivo do ponto de vista político.

Ainda assim, a posição do BC no xadrez da política econômica estava ficando mais difícil. Apesar das reiteradas promessas de trazer o IPCA para os 4,5% do centro da meta em 2012, o ceticismo do mercado quanto a esse objetivo estava claramente em alta. Entre meados de junho e o início de agosto deste ano, a mediana das expectativas de IPCA em 2012 coletadas pelo BC subiu de 5,1% para 5,3%. Em termos de credibilidade, isso evidentemente não é uma boa notícia para o Banco Central.

E o câmbio, é claro, tornou-se o outro grande problema. Mesmo com todas as medidas de controle de fluxos de capital, a cotação do dólar caiu abaixo de R$ 1,60, um dos pontos de maior valorização do real das últimas décadas. Com a necessidade de subir os juros para conter a inflação, o diferencial de taxas entre o Brasil e o mercado internacional tornou-se mais extremo, reforçando a tendência à apreciação.

Dessa forma, a política econômica – e especialmente o BC – viu-se presa de uma armadilha incômoda, especialmente para um governo com credenciais desenvolvimentistas: juros elevados e câmbio valorizado, prejudicando a indústria nacional, e inflação em alta, forçando o Banco Central a manter o torniquete
monetário.

A segunda chance

Nessa conjuntura, o reagravamento da situação internacional, com crise e desaceleração nos Estados Unidos e Europa, traz paradoxalmente vantagens para a política econômica brasileira (o que não significa que não haja riscos também). O esfriamento da atividade agora recebe uma contribuição espontânea do mundo, o que pode ajudar o BC a encerrar o ciclo de aperto monetário e já pensar na queda da Selic, como refletido no mercado futuro.

Aliás, desde o início de agosto, a mediana das projeções do IPCA em 2012 recuou para 5,2%. As pressões do juro sobre o câmbio permanecerão, mas pelo menos a política monetária talvez possa se encaminhar agora na direção desejada. Para alguns analistas, é uma nova chance (como em 2009) de o Brasil tentar romper para baixo o piso entre 6% e 7% da taxa real de juros.

No front fiscal, o governo acerta ao acenar com austeridade e ao anunciar o aumento de R$ 10 bilhões no superávit primário deste ano, para tentar abrir espaço à queda dos juros. E, nesse contexto, a crise internacional reforça o cacife de Dilma para resistir às pressões do Congresso por mais gastos, ligadas a despesas de saúde e aumentos para bombeiros e policiais, entre outros itens. Trata-se, enfim, de um momento ideal para corrigir, tanto no discurso quanto na prática, o surto de expansionismo fiscal que desequilibrou a economia brasileira no final do mandato do governo Lula, e que, mesmo longe de constituir uma herança maldita, é um legado, no mínimo, problemático.

O grande desafio, porém, como já colocado por diversos analistas, está na continuidade da política de controle fiscal em 2012, para o qual já estão contratados – segundo conta recente do economista Mansueto Almeida, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) – gastos adicionais que podem superar R$ 80 bilhões, entre aumento de salário mínimo e subsídios diversos. Evidentemente, o esforço fiscal não poderá ser sustentado à custa de sacrificar o investimento público, como em 2011.

No final das contas, portanto, a sorte ajuda, mas não resolve. Dilma Rousseff e a sua equipe econômica terão de suar a camisa, em termos políticos, para aproveitar essa segunda chance de baixar o juro real brasileiro para níveis menos distorcidos, e colocar a economia em ritmo equilibrado e sustentável de crescimento.

Texto de: Fernando Dantas
Fonte: Estadão.com.br

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